O Jardim das Delícias Terrenas Hieronymus Bosch - 1503 |
A Idade Média foi a
época de transição entre o mundo clássico para a idade moderna. Transformou não
só uma época com suas descobertas e inovações, mas, sobretudo, homens e o que
esses mesmos fizeram para compor a história. A dor e a alegria de viver
estiveram presentes aos anos que somaram à inauguração de novos tempos. A peste
e as guerras estiveram tão firmemente marcadas nesse contexto histórico que
seria difícil visualizar um tempo – entre os séculos XI e XV – sem que não
tivessem acontecido.
Johan Huizinga |
As definições de céu e
inferno eram muito bem esclarecidas, pois, se houvesse provação, essa não
poderia deixar de ser se não fosse a daqueles tempos escuros, frios e
consequentemente monótonos, mesmo com acontecimentos tão endurecidos surgindo o
tempo todo. A cada guerra e a cada nova epidemia que surgia era como se fosse
um alívio para que o real motivo de viver naqueles tempos fossem mesmo o de
passar pelo sofrimento e pela ausência do sossego. Contudo, havia um ar
romântico a todo instante. A real circunstância da vida medieval dava tons
pastel de poesia e literatura a uma sangrenta e fétida realidade. Como que contraditório,
o homem da Idade Média via no sofrimento a grande razão para ser. Desta
maneira, o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) traduz de modo
poético ao iniciar sua obra “O outono da Idade Média”:
“Quando o
mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de
contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, entre o
infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós...”
As melancolias desses
tempos deram ainda mais nitidez aos contrastes de cada contexto histórico. O
desenvolvimento da cristandade surge levando fiéis que deixavam de viver seu
tempo real na Terra para vislumbrar um paraíso que ansiavam existir. Junto ao
crescimento da Igreja, surge o crescimento rural, seus processos agrícolas e
demográficos. Essas relações são decorrentes dos freqüentes fenômenos
dramáticos que rondam sociedades inteiras. Cidades de toda a Europa se rendem
ao temor e juntas se dissimilam criando novas comunidades. O medo da peste
assombra todos. Um terço da população se torna vítima da pandemia. Mais um
tanto está assombrado pelas guerras e suas conseqüências:
O Triunfo da Morte - afresco em Palermo - 1446 |
(...) a mortandade e o medo que ela suscitava eram
tão vivos que “as pessoas morriam sem servidor e eram enterradas sem sacerdote.
O pai não visitava seu filho, nem o filho visitava seu pai: a caridade estava
morta e a esperança, abatida” (Baschet, P. 248)
Contradizendo em partes
a história da Idade Média pintada quase que em afrescos por J. Huizinga, J.
Baschet coloca o homem do período, com menores tons pastel e coloridos e mais
nuançado, acinzentado de um inverno triste e ainda com pinceladas de um
vermelho sangrento. O homem está sim vivendo um momento de decisão e com todo o
peso que uma mudança traz. Ele consegue se situar de maneira dolorosa no mundo
real em que vive. Mostra que sabe disso, levanta questionamentos e rebeliões.
De certa forma traduz para si mesmo o que a vida que vê é mesmo aquela que
deveria ter. Quase um positivista:
“(...) O pessimismo invade os espíritos e o sentimento
de viver em mundo que agoniza, que chega ao seu fim, se faz mais presente do
que nunca. A obsessão da morte explode em todos os lugares, nas práticas
funerárias assim como na literatura e na arte, onde os temas macabros ganham
destaque.” (Baschet, P. 252)
E é a arte a maior
fonte histórica onde o historiador se baseia para incorporar o mundo vivente da
Idade Média. É através de obras ricas e valorizadas nos dias de hoje que vemos
o desenvolvimento contínuo das cidades, do comércio e da vida no campo. Nessas
obras percebemos ainda a organização social bem expressada e representada – a
realeza, o campesionato, as formas de trabalho. Junto a essas questões sociais,
podemos vem ainda o poderio da Igreja sobre não somente as pessoas, mas como
também sobre os artistas.
“A arte romântica, produto e expressão do
desenvolvimento da Cristandade após o ano mil, transforma-se no transcurso do
século 12. Seu novo rosto, o gótico, é uma arte urbana. Arte das catedrais
surgidas do corpo urbano, elas o sublinham e o dominam. A iconografia das
catedrais é a expressão da cultura urbana: a vida ativa e a vida contemplativa
buscam um equilíbrio instável, as corporações ornamentando as igrejas com
vitrais e o saber escolástico aí sendo exibido. Em redor da cidade, as igrejas
rurais reproduzem com menor felicidade artística e com recursos materiais muito
mais limitados a planta da catedral da cidade-modelo ou algum de seus elementos
mais significativos: o campanário, a torre, o tímpano. Feita para abrigar um
povo novo, mais numeroso, mais humano e mais realista, a catedral não deixa de
recordar-lhe a vida rural próxima e benfazeja. O tema dos meses, no qual são
representados os trabalhos rurais, continua a ser um dos ornamentos
tradicionais da igreja urbana.” (Le Goff, P. 75 e 76)
Algumas situações
entram em cena. Os poderes político e militar evoluem e se tornam nobres. A
soberania da Igreja entra em conflito, mas continua firme e consistente. Tanto
que é levada além mar para a nova descoberta: a América. Para isso surgem
ferramentas para a concretização dessa conquista: a bússola, as caravelas e os
instrumentos navais.
“(...) A colonização ultra-atlântica não é o
resultado de um mundo novo, nascido sobre o húmus em que se decompõe uma Idade
Média agonizante. Para além das transformações, das crises e dos obstáculos, é
a sociedade feudal, prosseguindo a trajetória observada desde a aurora do
segundo milênio, que empurra a Europa para o mar.” (Baschet, P. 274)
É esse mundo que mesmo
sob as dificuldades, leva o prolongamento de suas questões e teorias para o
outro lado do oceano. Um mundo que de um lado atravessa o Atlântico em busca de
um novo mundo, mas que de fato está enraizado à época que o traduz e o que o
forma como é.
Entre as questões que
de um lado defendem a (ainda) existência do feudalismo e de outro, a criação do
capitalismo surgem algumas faces. Huizinga acreditando que com as descobertas
das Américas cai o conceito de tudo que engloba o que temos por noção Idade
Média e Baschet percebendo dentro de suas razões que muito ainda aconteceu para
que a Idade Moderna surgisse de fato. Talvez só mesmo o século XX se torna
totalmente livre das representações do feudalismo e dos comportamentos da Idade
Média. De qualquer forma, foi através da historiografia medieval que foi criada
e apresentada uma nova maneira de pensar e de fazer História.
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