segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Idade Média... e o homem volta ao campo

O Jardim das Delícias Terrenas
Hieronymus Bosch - 1503
A Idade Média foi a época de transição entre o mundo clássico para a idade moderna. Transformou não só uma época com suas descobertas e inovações, mas, sobretudo, homens e o que esses mesmos fizeram para compor a história. A dor e a alegria de viver estiveram presentes aos anos que somaram à inauguração de novos tempos. A peste e as guerras estiveram tão firmemente marcadas nesse contexto histórico que seria difícil visualizar um tempo – entre os séculos XI e XV – sem que não tivessem acontecido.
Johan Huizinga
As definições de céu e inferno eram muito bem esclarecidas, pois, se houvesse provação, essa não poderia deixar de ser se não fosse a daqueles tempos escuros, frios e consequentemente monótonos, mesmo com acontecimentos tão endurecidos surgindo o tempo todo. A cada guerra e a cada nova epidemia que surgia era como se fosse um alívio para que o real motivo de viver naqueles tempos fossem mesmo o de passar pelo sofrimento e pela ausência do sossego. Contudo, havia um ar romântico a todo instante. A real circunstância da vida medieval dava tons pastel de poesia e literatura a uma sangrenta e fétida realidade. Como que contraditório, o homem da Idade Média via no sofrimento a grande razão para ser. Desta maneira, o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) traduz de modo poético ao iniciar sua obra “O outono da Idade Média”:

 “Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, entre o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós...”

As melancolias desses tempos deram ainda mais nitidez aos contrastes de cada contexto histórico. O desenvolvimento da cristandade surge levando fiéis que deixavam de viver seu tempo real na Terra para vislumbrar um paraíso que ansiavam existir. Junto ao crescimento da Igreja, surge o crescimento rural, seus processos agrícolas e demográficos. Essas relações são decorrentes dos freqüentes fenômenos dramáticos que rondam sociedades inteiras. Cidades de toda a Europa se rendem ao temor e juntas se dissimilam criando novas comunidades. O medo da peste assombra todos. Um terço da população se torna vítima da pandemia. Mais um tanto está assombrado pelas guerras e suas conseqüências:

O Triunfo da Morte - afresco em Palermo - 1446
(...) a mortandade e o medo que ela suscitava eram tão vivos que “as pessoas morriam sem servidor e eram enterradas sem sacerdote. O pai não visitava seu filho, nem o filho visitava seu pai: a caridade estava morta e a esperança, abatida” (Baschet, P. 248)

Contradizendo em partes a história da Idade Média pintada quase que em afrescos por J. Huizinga, J. Baschet coloca o homem do período, com menores tons pastel e coloridos e mais nuançado, acinzentado de um inverno triste e ainda com pinceladas de um vermelho sangrento. O homem está sim vivendo um momento de decisão e com todo o peso que uma mudança traz. Ele consegue se situar de maneira dolorosa no mundo real em que vive. Mostra que sabe disso, levanta questionamentos e rebeliões. De certa forma traduz para si mesmo o que a vida que vê é mesmo aquela que deveria ter. Quase um positivista:

“(...) O pessimismo invade os espíritos e o sentimento de viver em mundo que agoniza, que chega ao seu fim, se faz mais presente do que nunca. A obsessão da morte explode em todos os lugares, nas práticas funerárias assim como na literatura e na arte, onde os temas macabros ganham destaque.” (Baschet, P. 252)

E é a arte a maior fonte histórica onde o historiador se baseia para incorporar o mundo vivente da Idade Média. É através de obras ricas e valorizadas nos dias de hoje que vemos o desenvolvimento contínuo das cidades, do comércio e da vida no campo. Nessas obras percebemos ainda a organização social bem expressada e representada – a realeza, o campesionato, as formas de trabalho. Junto a essas questões sociais, podemos vem ainda o poderio da Igreja sobre não somente as pessoas, mas como também sobre os artistas.

“A arte romântica, produto e expressão do desenvolvimento da Cristandade após o ano mil, transforma-se no transcurso do século 12. Seu novo rosto, o gótico, é uma arte urbana. Arte das catedrais surgidas do corpo urbano, elas o sublinham e o dominam. A iconografia das catedrais é a expressão da cultura urbana: a vida ativa e a vida contemplativa buscam um equilíbrio instável, as corporações ornamentando as igrejas com vitrais e o saber escolástico aí sendo exibido. Em redor da cidade, as igrejas rurais reproduzem com menor felicidade artística e com recursos materiais muito mais limitados a planta da catedral da cidade-modelo ou algum de seus elementos mais significativos: o campanário, a torre, o tímpano. Feita para abrigar um povo novo, mais numeroso, mais humano e mais realista, a catedral não deixa de recordar-lhe a vida rural próxima e benfazeja. O tema dos meses, no qual são representados os trabalhos rurais, continua a ser um dos ornamentos tradicionais da igreja urbana.” (Le Goff, P. 75 e 76)

Algumas situações entram em cena. Os poderes político e militar evoluem e se tornam nobres. A soberania da Igreja entra em conflito, mas continua firme e consistente. Tanto que é levada além mar para a nova descoberta: a América. Para isso surgem ferramentas para a concretização dessa conquista: a bússola, as caravelas e os instrumentos navais.

“(...) A colonização ultra-atlântica não é o resultado de um mundo novo, nascido sobre o húmus em que se decompõe uma Idade Média agonizante. Para além das transformações, das crises e dos obstáculos, é a sociedade feudal, prosseguindo a trajetória observada desde a aurora do segundo milênio, que empurra a Europa para o mar.” (Baschet, P. 274)

É esse mundo que mesmo sob as dificuldades, leva o prolongamento de suas questões e teorias para o outro lado do oceano. Um mundo que de um lado atravessa o Atlântico em busca de um novo mundo, mas que de fato está enraizado à época que o traduz e o que o forma como é. 


Entre as questões que de um lado defendem a (ainda) existência do feudalismo e de outro, a criação do capitalismo surgem algumas faces. Huizinga acreditando que com as descobertas das Américas cai o conceito de tudo que engloba o que temos por noção Idade Média e Baschet percebendo dentro de suas razões que muito ainda aconteceu para que a Idade Moderna surgisse de fato. Talvez só mesmo o século XX se torna totalmente livre das representações do feudalismo e dos comportamentos da Idade Média. De qualquer forma, foi através da historiografia medieval que foi criada e apresentada uma nova maneira de pensar e de fazer História.